quarta-feira, 21 de novembro de 2012

“Minha vida é esta: subir Bahia, descer Floresta


“A minha vida é esta: subir Bahia, descer Floresta...” Esse trecho de Rômulo Paes, registrado em monumento na Rua da Bahia com Álvares Cabral, foi inicialmente feito para falar do vai e vem dos bondes que vinham do tradicional bairro Floresta e subiam a Rua da Bahia, ligando o centro à Praça da Liberdade.


Mas hoje, sem os bondes, esses versos traduzem muito mais do que um velho meio de transporte, eles refletem uma rua que durante muitos anos foi a síntese de uma cidade que em um piscar de olhos passou de Cidade Jardim, uma quase provinciana capital, para uma metrópole que já não cabe em seus limites. O que versos de uma Beagá já perdida no passado têm em comum com a metrópole? O que de Rua da Bahia restou nos corações de quem mora nas Alterosas? Um desafio dos mais agradáveis é andar pela Rua da Bahia e descobrir pelos seus passeios, o que resta do passado e o que de novo a faz pulsar dentro do caótico centro urbano. Mas se há um caminho que nos leva a entender a Rua da Bahia, esse caminho não é feito de asfalto e pedras, e sim de papel e tinta.  Foi através do verso e da prosa que a rua virou A Rua. 

Todos os caminho iam à Rua da Bahia. Da Rua da Bahia partiam vias para os fundos do fim do mundo, para os tramontes dos acabaminas… A simples reta urbana… Mas seria uma reta? Ou antes, a curva? Era a reta, a reta sem tempo, a reta continente dos segredos dos infinitos paralelos. E era a curva. A imarcescível curva, épura dos passos projetados, imanência das ciclóides, circulo infinito… Nós sabíamos, o Carlos tinha dito. A Rua da Bahia era rua sem princípio nem fim. Descíamos. Cada um de nós era um dos moços do poema. Subíamos. ‘Um moço subia a Rua da Bahia (Pedro Nava) 

No início do século XX tudo remetia à república em Belo Horizonte, e foi nesse clima que a Rua da Bahia foi planejada para ser um corredor que ligaria o comércio ao centro democrático da cidade, a Praça da Liberdade.Mas em pouco tempo esse corredor ganhou vida, através dos funcionários públicos e dos comerciantes que paravam em cada esquina comentando sobre assuntos como política, negócios ou até mesmo o simples cotidiano. A Rua da Bahia era a artéria de BH. Lá estava o principal jornal, o Grande Hotel, a principal boutique.

A Casa Giácomo compunha o cenário da rua, a casa lotérica da época, à sua frente os engraxates trabalhavam embelezando os pés dos homens ilustres da capital mineira. Logo depois da Casa Gíácomo encontrava a Joalheria Pádua Na rua também funcionava o Jornal “Folha de Minas”, importante veículo de informação. A confeitaria Suíça servia os melhores doces e confeitos da cidade e era lá que a tradicional família mineira levava suas filhas para passear. 

A baleira da Rua da Bahia

É bela como as balas são divinas.

Ou divina é a baleira, e suas balasImitam 

o caramelo de seus olhos?

Carlos Drummond – Menção à Confeitaria Suíça. 

 A Livraria Itatiaia funcionava no prédio nomeado Parc Royal e era frequentada pelos intelectuais da cidade. No 2° andar do prédio era a residência de Edison Moreira. Era lá que se discutia literatura e pensavam sobre as sucessões da Academia Mineira de Letras. Os bondes também faziam parte do cotidiano da rua. Nos bondes viajava toda a população belo-horizontina, homens brancos, negros e mulatos, magistrados e operários, moços e velhos, ricos e pobres. O bonde, de certa forma também era um centro de convívio social e cultural importante na Rua da Bahia.


A Rua da Bahia era sem dúvida o ponto mais importante da cidade. A recém-construída capital tinha agora um lugar para todas suas ânsias vanguardistas: a moda, o luxo, a comida, a república e principalmente a arte. O modo de se cumprimentar, o modo vender, o modo de beber... eram as pequenas atitudes que faziam da rua um caldeirão de ideias. Mas não só de atividades bem comportadas vivia a Rua da Bahia, poetas, músicos, jornalista e outros intelectuais da época passaram a frequentar a rua; surgia a zona boêmia: álcool, sexo e literatura. 

O Café Estrela tornou-se famoso porque foi ponto de encontro dos intelectuais mineiros que, na década de 20, integraram o movimento modernista literário, tais como Carlos Drummond de Andrade, Emilio Moura, Abgar Renault, Milton Campos, Pedro Nava. Principalmente após a instalação da primeira universidade da cidade, diversas pessoas vinham de outras localidades para estudar em Belo Horizonte. Uai, gente, o que esta cidade veio fazer aqui nesta rua? (Augusto Degois) Contestadores dos valores da capital, muitos boêmios ironizavam e desafiavam o ar bem coportado da alta sociedade que passava pela Rua da Bahia:


 Seria Carlos Drummond ou Aníbal Machado que disse: – Cidade casmurra e provinciana onde nada acontece. Dorme a tradicional família mineira. Vocês querem ver? Vou ficar pelado agora e subir esta avenida, e nada vai acontecer. E assim foi. Nada aconteceu. (Milton Campos)

E foram muitas as quebras de regras retratadas pela literatura, Pedro Nava em um de seus depoimentos disse: “Queríamos a deposição do presidente do Estado, o encarceramento dos seus secretários, um esbordoamento dos deputados e uma matança de delegados. E enquanto não vinham os morticínios exemplares, derivávamos de contra a cidade e contra o cidadãos.” 

Os boêmios estavam lá para desorganizar e contestar, e os bares da Rua da Bahia eram o cenário perfeito. Alucinados pela embriaguez e pelas ideais vanguardistas muitos arriscavam a subir os arcos do Viaduto Santa Tereza. Não desafiavam apenas a cidade, mas desafiavam a morte. A primeira geração a subir foi a de 20, com Carlos Drummond e vários outros boêmios que vinham descendo a rua. Vinte anos depois, a geração de 45, que não só admirava a arte de Drummond, tratou de imitar o feito. Agora, eram Fernando Sabino, Otto Lara Resende e Hélio Pellegrino que subiam correndo a estreita faixa de concreto. Drummond uma vez foi detido pelo ato, e Sabino escreveu na sua obra “Encontro Marcado” a sensação de passar pelos arcos com o trem passando sob seus pés. Atitude digna de quem queria quebrar o ar comportado de Beagá. “Naquela noite Mauro se animou a subir. Quando se viu largado no vazio, tendo sob seus pés apenas meio metro de cimento e lá embaixo, muito embaixo, os trilhos de ferro a brilhar, um trem passando exatamente naquele instante, não resistiu a vertigem. Deitou-se de bruços, agarrou-se com força dilacerando as unhas na superfície ásperas, pôs-se a chorar...” (O Encontro Marcado, Fernando Sabino)
 
Na primeira metade da década de 50, após o fechamento dos bares do Ponto e do Trianon, começara a funcionar a Gruta Metrópole, que foi sem dúvida, o último reduto da vida boêmia daquela rua. José Bento Teixeira Salles escreveu “intelectuais, jornalistas, políticos, artistas, comunistas, professores, empresários, funcionários públicos, esportistas, barbeiros, tudo que se pode imaginar. Todos discutiam tudo: política, esportes, negócios, artes, filosofia, literatura, segredos de família. A maledicência e os mexericos completavam o cardápio variado”


Conversa de botequim não instrui, mas informa. (Antônio Pinto Coelho) A Gruta era muito mais do que um bar, representava a vida da capital mineira. Era considerado por muitos como sua casa, sua família, a solução para seus problemas, muito mais que um simples ponto de encontro.  Eu conheci a rua da Bahia quando ela era feliz. Era feliz e tinha um de importância que irritava as outras ruas da cidade.

Um dia, parece que a rua da Bahia teve um desgosto qualquer e começou a decair. Hoje, a gente olha para ela com um respeito meio irônico e meio triste. (Carlos Drummond de Andrade)  

Juntamente com o crescimento da cidade, ocorria o “encolhimento” da Rua da Bahia. Prédios e casarões antigos (muitos com enorme valor histórico e cultural) davam lugares aos altos edifícos. Cinemas, casarões e redutos culturais perderam lugar na paisagem, sendo demolidos ou despercebidos.  Agora ninguém se conhece mais, ainda se sobe e desce a Rua da Bahia, porém sob ritmo frenético de uma das maiores cidades brasileiras. Os democráticos bondes deram lugar a ônibus, onde o que fazem é empurrarem-se uns aos outros sem nenhuma conversa, e carros que buzinam por todo o percurso. Mas a Rua da Bahia perdeu todo seu charme?


 
Foi uma lástima para a cidade a demolição do Grande Hotel, o prédio que ficava na esquina da Rua da Bahia com Augusto de Lima, era o símbolo da pompa que a rua tinha. E quando a recatada cidade viu um tal de Arcângelo Malleta ser construído em seu lugar foi um marco na história da cidade. Acabou-se a inocência de BH. O prédio tinha desde livrarias até quartos de prostitutas. Marginalizados  conviviam junto com os  intelectuais. Surgia a geração Suplemento. Era a poesia cada vez mais marginal que invadia a Rua da Bahia. Era a ditadura que queria calar os boêmios. No térreo, do então novo prédio, existiam diversos bares, entre eles os ainda existentes, O Pelicano, Lua Nova e Cantina do Lucas, sendo que os dois últimos foram movimentados pontos de encontro de intelectuais e jornalistas. “Dizem que o freguês tomava o aperitivo vespertino no Lua Nova e ia rebater, noite adentro, na cantina do Lucas” (Salles) Ironicamente o tão criticado edifício, hoje é um marco na rua. Não tem como pensar em Rua da Bahia sem se lembrar dos sebos, dos bares, das lojinhas do Malleta. Ser do Malleta agora é ser cult.  

Depois de muitos anos, a Rua da Bahia parecia estar fadada ao total ócio cultural. Não havia mais pensadores, não havia mais conversas, era apenas o ritmo da cidade grande. A mudança foi tão grande que até hoje é possível dividir a rua em duas: a parte baixa, situada próxima à Praça da Estação, com mendigos, bares “copos-sujos”, prostíbulos, comércios populares com mulheres com as mãos cheias de sacolas.E a arte alta: situada próximo à Praça da Liberdade, com bares refinados, faculdades, prédios luxuosos, engravatados andando rapidamente, estudantes saindo da biblioteca. A única coisa comum as duas é o trânsito caótico. Mas onde entra a cultura nesse apartheid ? Há 13 anos atrás a arte da rua da Bahia estava apenas nos livros.
 

Mas grupos ligados ou não ao governo começaram o processo de revitalização da Rua da Bahia. Houve e há uma reocupação, uma renovação.
 

Não há uma tentativa de imitar a boemia das décadas anteriores, mas um vontade de não deixar o espírito da rua morrer. Desde o Mercado das Flores, antigo ponto dos bondes, que hoje têm filas enormes para a compra de ingressos de peças, até o novíssimo Centro Cultural da UFMG, a regra é a mesma: ocupe a Rua da Bahia.

 Ações da própria população fez com que a boemia voltasse a respirar na rua da Bahia. A criação do Espaço 104, espaço alternativo da cidade que está situado bem no começo da rua foi impulsionado por outros movimentos de revitalização da cidade. O Circuito Liberdade também trouxe as pessoas até a parte alta da cidade. As lojas populares, o botecos e os mendigos continuam e possivelmente continuarão, uma vez que, a Rua da Bahia não é uma espaço montado, e sim um organismo integrante da cidade. Os bares do hipercentro são hoje frequentados por muitos jovens do circuito centro-sul.

É que os restaurantes, cafés e espaços culturais desta região têm atraído não só seus costumeiros fregueses (artistas marginais e moradores do centro), mas também a classe alta belo-horizontina. Será uma volta ao passado?


É bem provável que não. Pois muito mais forte que a volta da burguesia aos barzinhos da moda é movimento Hip-hop que dominou a região do viaduto Santa Tereza. Assim como os antigos poetas, os mc’s fazem da região um reduto da poesia em BH. Mas diferente de Drummond ou Sabino, a poesia não está sobre os arcos do Viaduto e sim embaixo dele. O Duelo de Mc’s provocou uma verdadeira mudança na vida cultural da Rua da Bahia. Essa é a nova Rua da Bahia, plural e única. As cadeiras amarelas em frente ao museu Inimá de Paula não deixam mentir: o ato de “butecar” na rua dos dias de hoje está intimamente ligado à cultura. Ao mesmo tempo em que uma senhora já um pouco bêbada brinda com a colega, uma desenhista faz seus traços na porta do museu.  

As livrarias do Malleta são uma atração, mais de 20 sebos e lojas especializadas em literatura e música, como a Livraria Shazan, tradicional destino de intelectuais, colecionadores e ávidos leitores desde a década de 1960. Um barbeiro que deve ter lá seus 70 anos fecha sua loja enquanto jovens vão treinar artes marciais. Os sebos, os grafites, os casais na pracinha, o ônibus que não passa deixando que o espera impaciente. Os casais indo no Teatro da Cidade, os mendigos na esquina. Bobagem quem pensa que a Rua da Bahia pode voltar a ser o que era ou que ela morreu. Hoje existe hora do rush, existe congestionamento, existem produtos Made in China. 

Estamos falando de uma rua diferente, um mundo diferente. Um mundo que tem tudo ao mesmo tempo. E para redescobrir a Rua da Bahia basta fazer coisas simples: ler, sentar no boteco, conversar, ouvir sons, ver cores, andar; nada muito diferente das décadas passadas.  Talvez você prefira descer a Bahia e subir a Floresta. Não faz mal, afinal um pouco de transgressão faz bem à boêmia Rua da Bahia.           


Um comentário: