“Minha vida é esta: subir Bahia, descer Floresta
“A minha vida é esta: subir Bahia, descer Floresta...” Esse trecho de
Rômulo Paes, registrado em monumento na Rua da Bahia com Álvares Cabral, foi
inicialmente feito para falar do vai e vem dos bondes que vinham do tradicional
bairro Floresta e subiam a Rua da Bahia, ligando o centro à Praça da Liberdade.

Mas hoje, sem os bondes, esses versos traduzem muito mais do que um
velho meio de transporte, eles refletem uma rua que durante muitos anos foi a
síntese de uma cidade que em um piscar de olhos passou de Cidade Jardim, uma
quase provinciana capital, para uma metrópole que já não cabe em seus limites. O que versos de uma Beagá já perdida no passado têm em comum com a
metrópole? O que de Rua da Bahia restou nos corações de quem mora nas Alterosas? Um desafio dos mais agradáveis é andar pela Rua da Bahia e descobrir
pelos seus passeios, o que resta do passado e o que de novo a faz pulsar dentro
do caótico centro urbano. Mas se há um caminho que nos leva a entender a Rua da
Bahia, esse caminho não é feito de asfalto e pedras, e sim de papel e
tinta. Foi através do verso e da prosa
que a rua virou A Rua.
Todos os caminho iam à Rua da Bahia. Da Rua da
Bahia partiam vias para os fundos do fim do mundo, para os tramontes dos
acabaminas… A simples reta urbana… Mas seria uma reta? Ou antes, a curva? Era a
reta, a reta sem tempo, a reta continente dos segredos dos infinitos paralelos.
E era a curva. A imarcescível curva, épura dos passos projetados, imanência das
ciclóides, circulo infinito… Nós sabíamos, o Carlos tinha dito. A Rua da Bahia
era rua sem princípio nem fim. Descíamos. Cada um de nós era um dos moços do
poema. Subíamos. ‘Um moço subia a Rua da Bahia (Pedro Nava)
No início do século XX tudo remetia à
república em Belo Horizonte, e foi nesse clima que a Rua da Bahia foi planejada
para ser um corredor que ligaria o comércio ao centro democrático da cidade, a
Praça da Liberdade.Mas em pouco tempo esse corredor ganhou vida,
através dos funcionários públicos e dos comerciantes que paravam em cada
esquina comentando sobre assuntos como política, negócios ou até mesmo o
simples cotidiano. A Rua da Bahia era a artéria de BH. Lá estava
o principal jornal, o Grande Hotel, a principal boutique.
A Casa
Giácomo compunha o cenário da rua, a casa lotérica da época, à sua frente os engraxates trabalhavam embelezando
os pés dos homens ilustres da capital mineira. Logo depois da Casa
Gíácomo encontrava a Joalheria Pádua Na rua também funcionava o Jornal “Folha
de Minas”, importante veículo de informação. A confeitaria
Suíça servia os melhores doces e confeitos da cidade e era lá que a tradicional
família mineira levava suas filhas para passear.
A baleira da Rua da Bahia
É bela como as balas são divinas.
Ou divina é a baleira, e suas balasImitam
o caramelo de seus olhos?
Carlos Drummond – Menção à
Confeitaria Suíça.
A Livraria
Itatiaia funcionava no prédio nomeado Parc Royal e era frequentada pelos
intelectuais da cidade. No 2° andar do
prédio era a residência de Edison Moreira. Era lá que se discutia
literatura e pensavam sobre as sucessões da Academia Mineira de Letras. Os bondes
também faziam parte do cotidiano da rua. Nos bondes viajava toda a
população belo-horizontina, homens brancos, negros e mulatos, magistrados e
operários, moços e velhos, ricos e pobres. O bonde, de certa forma também era
um centro de convívio social e cultural importante na Rua da Bahia.
A Rua da Bahia era sem dúvida o ponto mais
importante da cidade. A recém-construída capital tinha agora um lugar para
todas suas ânsias vanguardistas: a moda, o luxo, a comida, a república e
principalmente a arte. O modo de se cumprimentar, o modo vender, o modo de
beber... eram as pequenas atitudes que faziam da rua um caldeirão de ideias. Mas não só de atividades bem comportadas
vivia a Rua da Bahia, poetas, músicos, jornalista e outros intelectuais da
época passaram a frequentar a rua; surgia a zona boêmia: álcool, sexo e
literatura.
O Café Estrela tornou-se famoso porque foi
ponto de encontro dos intelectuais mineiros que, na década de 20, integraram o
movimento modernista literário, tais como Carlos Drummond de Andrade, Emilio
Moura, Abgar Renault, Milton Campos, Pedro Nava. Principalmente após a
instalação da primeira universidade da cidade, diversas pessoas vinham de
outras localidades para estudar em Belo Horizonte. Uai, gente, o que esta
cidade veio fazer aqui nesta rua? (Augusto
Degois) Contestadores dos valores da capital, muitos
boêmios ironizavam e desafiavam o ar bem coportado da alta sociedade que
passava pela Rua da Bahia:
Seria Carlos Drummond ou Aníbal Machado que
disse: – Cidade casmurra e provinciana onde nada acontece. Dorme a tradicional
família mineira. Vocês querem ver? Vou ficar pelado agora e subir esta avenida,
e nada vai acontecer. E assim foi. Nada aconteceu.
(Milton Campos)
E foram muitas as quebras de regras
retratadas pela literatura, Pedro Nava em um de seus depoimentos disse: “Queríamos a deposição do presidente do Estado, o encarceramento dos
seus secretários, um esbordoamento dos deputados e uma matança de delegados. E
enquanto não vinham os morticínios exemplares, derivávamos de contra a cidade e
contra o cidadãos.”


Os boêmios estavam lá para desorganizar e
contestar, e os bares da Rua da Bahia eram o cenário perfeito. Alucinados pela
embriaguez e pelas ideais vanguardistas muitos arriscavam a subir os arcos do
Viaduto Santa Tereza. Não desafiavam apenas a cidade, mas desafiavam a morte. A primeira geração a subir foi a de 20, com
Carlos Drummond e vários outros boêmios que vinham descendo a rua. Vinte anos
depois, a geração de 45, que não só admirava a arte de Drummond, tratou de
imitar o feito. Agora, eram Fernando Sabino, Otto Lara Resende e Hélio
Pellegrino que subiam correndo a estreita faixa de concreto. Drummond uma vez foi detido pelo ato, e
Sabino escreveu na sua obra “Encontro Marcado” a sensação de passar pelos arcos
com o trem passando sob seus pés. Atitude digna de quem queria quebrar o ar
comportado de Beagá. “Naquela noite Mauro se animou a subir. Quando se viu largado no vazio,
tendo sob seus pés apenas meio metro de cimento e lá embaixo, muito embaixo, os
trilhos de ferro a brilhar, um trem passando exatamente naquele instante, não
resistiu a vertigem. Deitou-se de bruços, agarrou-se com força dilacerando as
unhas na superfície ásperas, pôs-se a chorar...” (O
Encontro Marcado, Fernando Sabino)
Na primeira metade da década de 50,
após o fechamento dos bares do Ponto e do Trianon, começara a funcionar a Gruta
Metrópole, que foi sem dúvida, o último reduto da vida boêmia daquela rua. José
Bento Teixeira Salles escreveu “intelectuais, jornalistas, políticos, artistas,
comunistas, professores, empresários, funcionários públicos, esportistas,
barbeiros, tudo que se pode imaginar. Todos discutiam tudo: política, esportes,
negócios, artes, filosofia, literatura, segredos de família. A maledicência e
os mexericos completavam o cardápio variado”
Conversa de botequim não
instrui, mas informa. (Antônio
Pinto Coelho) A Gruta era muito mais do que um bar,
representava a vida da capital mineira. Era considerado por muitos como sua
casa, sua família, a solução para seus problemas, muito mais que um simples
ponto de encontro. Eu
conheci a rua da Bahia quando ela era feliz. Era feliz e tinha um de
importância que irritava as outras ruas da cidade.
Um dia, parece que a rua da
Bahia teve um desgosto qualquer e começou a decair. Hoje, a gente olha para ela
com um respeito meio irônico e meio triste. (Carlos Drummond de Andrade)
Juntamente com o crescimento da
cidade, ocorria o “encolhimento” da Rua da Bahia. Prédios e casarões antigos
(muitos com enorme valor histórico e cultural) davam lugares aos altos edifícos.
Cinemas, casarões e redutos culturais perderam lugar na paisagem, sendo
demolidos ou despercebidos. Agora
ninguém se conhece mais, ainda se sobe e desce a Rua da Bahia, porém sob ritmo
frenético de uma das maiores cidades brasileiras. Os democráticos bondes deram
lugar a ônibus, onde o que fazem é empurrarem-se uns aos outros sem nenhuma
conversa, e carros que buzinam por todo o percurso. Mas a Rua da Bahia perdeu
todo seu charme?
Foi uma lástima para a cidade a demolição do
Grande Hotel, o prédio que ficava na esquina da Rua da Bahia com Augusto de
Lima, era o símbolo da pompa que a rua tinha. E
quando a recatada cidade viu um tal de Arcângelo Malleta ser construído em seu
lugar foi um marco na história da cidade. Acabou-se a inocência de BH. O prédio
tinha desde livrarias até quartos de prostitutas. Marginalizados conviviam junto com os intelectuais. Surgia a geração Suplemento. Era
a poesia cada vez mais marginal que invadia a Rua da Bahia. Era a ditadura que
queria calar os boêmios. No térreo, do então novo prédio,
existiam diversos bares, entre eles os ainda existentes, O Pelicano, Lua Nova e
Cantina do Lucas, sendo que os dois últimos foram movimentados pontos de
encontro de intelectuais e jornalistas. “Dizem que o freguês tomava o aperitivo
vespertino no Lua Nova e ia rebater, noite adentro, na cantina do Lucas”
(Salles) Ironicamente o tão criticado edifício,
hoje é um marco na rua. Não tem como pensar em Rua da Bahia sem se lembrar dos
sebos, dos bares, das lojinhas do Malleta. Ser do Malleta agora é ser cult.
Depois
de muitos anos, a Rua da Bahia parecia estar fadada ao total ócio cultural. Não
havia mais pensadores, não havia mais conversas, era apenas o ritmo da cidade
grande. A
mudança foi tão grande que até hoje é possível dividir a rua em duas: a parte
baixa, situada próxima à Praça da Estação, com mendigos, bares “copos-sujos”,
prostíbulos, comércios populares com mulheres com as mãos cheias de sacolas.E
a arte alta: situada próximo à Praça da Liberdade, com bares refinados,
faculdades, prédios luxuosos, engravatados andando rapidamente, estudantes
saindo da biblioteca. A
única coisa comum as duas é o trânsito caótico. Mas onde entra a cultura nesse apartheid ? Há 13 anos atrás a arte da
rua da Bahia estava apenas nos livros.
Mas
grupos ligados ou não ao governo começaram o processo de revitalização da Rua
da Bahia. Houve e há uma reocupação, uma renovação.
Não
há uma tentativa de imitar a boemia das décadas anteriores, mas um vontade de
não deixar o espírito da rua morrer. Desde o Mercado das Flores, antigo ponto
dos bondes, que hoje têm filas enormes para a compra de ingressos de peças, até
o novíssimo Centro Cultural da UFMG, a regra é a mesma: ocupe a Rua da Bahia.
Ações
da própria população fez com que a boemia voltasse a respirar na rua da Bahia.
A criação do Espaço 104, espaço alternativo da cidade que está situado bem no
começo da rua foi impulsionado por outros movimentos de revitalização da
cidade. O Circuito Liberdade também trouxe as pessoas até a parte alta da
cidade. As
lojas populares, o botecos e os mendigos continuam e possivelmente continuarão,
uma vez que, a Rua da Bahia não é uma espaço montado, e sim um organismo
integrante da cidade. Os
bares do hipercentro são hoje frequentados por muitos jovens do circuito
centro-sul. .
É que os restaurantes, cafés e espaços culturais desta
região têm atraído não só seus costumeiros fregueses (artistas marginais e
moradores do centro), mas também a classe alta belo-horizontina. Será uma volta
ao passado?
É
bem provável que não. Pois muito mais forte que a volta da burguesia aos
barzinhos da moda é movimento Hip-hop que dominou a região do viaduto Santa
Tereza. Assim
como os antigos poetas, os mc’s fazem da região um reduto da poesia em BH. Mas
diferente de Drummond ou Sabino, a poesia não está sobre os arcos do Viaduto e
sim embaixo dele. O Duelo de Mc’s provocou uma verdadeira mudança na vida
cultural da Rua da Bahia. Essa é a nova Rua da Bahia, plural e
única. As cadeiras amarelas em frente ao museu Inimá de Paula não deixam
mentir: o ato de “butecar” na rua dos dias de hoje está intimamente ligado à
cultura. Ao mesmo tempo em que uma senhora já um pouco bêbada brinda com a
colega, uma desenhista faz seus traços na porta do museu.
As livrarias do Malleta são uma atração, mais
de 20 sebos e lojas especializadas em literatura e música, como a Livraria
Shazan, tradicional destino de intelectuais, colecionadores e ávidos leitores
desde a década de 1960. Um barbeiro que deve ter lá seus 70
anos fecha sua loja enquanto jovens vão treinar artes marciais. Os sebos, os
grafites, os casais na pracinha, o ônibus que não passa deixando que o espera
impaciente. Os casais indo no Teatro da Cidade, os mendigos na esquina. Bobagem quem pensa que a Rua da Bahia
pode voltar a ser o que era ou que ela morreu. Hoje existe hora do rush, existe
congestionamento, existem produtos Made in China.
Estamos falando de uma rua
diferente, um mundo diferente. Um mundo que tem tudo ao mesmo tempo. E para redescobrir a Rua da Bahia
basta fazer coisas simples: ler, sentar no boteco, conversar, ouvir sons, ver
cores, andar; nada muito diferente das décadas passadas. Talvez você prefira descer a Bahia e subir a
Floresta. Não faz mal, afinal um pouco de transgressão faz bem à boêmia Rua da
Bahia.
Muito bom o texto!!!
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